Arte e Resistência: Preservando a Memória em Tempos de Esquecimento Histórico
O silenciamento da história sempre foi uma tática usada por regimes e ideologias que tentam impor uma única visão da realidade. Narrativas de grupos marginalizados foram silenciadas, distorcidas ou deliberadamente apagadas ao longo dos séculos. Hoje, enfrentamos uma nova onda de silenciamentos, impulsionada por movimentos conservadores que promovem exclusões identitárias, censura digital e o desmonte de políticas inclusivas. No entanto, a arte e a cultura continuam sendo poderosas ferramentas para preservar memórias e resistir, mantendo viva a chama da diversidade.
Nos Estados Unidos, o governo Trump exemplificou o silenciamento institucional ao remover termos como “LGBTQ”, “transgênero” e “HIV” de sites governamentais, negando às comunidades vulneráveis informações essenciais. Mais do que uma exclusão simbólica, foi uma tentativa de controle ideológico, negando a existência de identidades que desafiam a hegemonia conservadora. Durante a epidemia de AIDS, esse silenciamento foi ainda mais intenso, acompanhado de uma narrativa preconceituosa que estigmatizava a comunidade LGBTQIA+. Foi nesse contexto que artistas como Cazuza, Félix González-Torres e a música Read My Lips de Somerville usaram suas vozes para resistir, transformando a dor em memória e a memória em luta.
Cazuza, um dos maiores ícones da música brasileira, tornou-se um símbolo de resistência e visibilidade em tempos de preconceito e silêncio. Ao revelar publicamente que vivia com HIV, desafiou o silenciamento que cercava a epidemia e as pessoas afetadas por ela. Sua música, como “O Tempo Não Para”, se tornou um hino de resistência, denunciando a hipocrisia social e o descaso com os marginalizados:
“Eu vejo o futuro repetir o passado / Eu vejo um museu de grandes novidades.”
Além de “O Tempo Não Para”, Cazuza também nos deixou o poderoso “Read My Lips”, lançado em 1989, que ressoa como um grito contra a censura e a repressão. A música é uma afirmação de resistência, desafiando diretamente aqueles que tentam silenciar e apagar. Cazuza, com sua ousadia e rebeldia, dizia “leiam meus lábios”, uma forma de afirmar que sua voz não seria silenciada. Essa música, assim como outras de sua carreira, simboliza o poder de se expressar livremente e de resistir ao silenciamento, denunciando a hipocrisia de uma sociedade que tenta fechar os olhos para o sofrimento.
Por outro lado, a música Read My Lips, de Somerville, traz um eco dessa mesma resistência, trazendo à tona a luta contra o apagamento das vozes marginalizadas. Com um estilo único e cheio de atitude, a faixa se torna uma manifestação explícita contra a opressão e o desejo de silenciar quem se recusa a seguir as normas sociais estabelecidas. Ela faz um chamado à ação, à visibilidade e à expressão, lembrando que, quando nos dizem para “ler os lábios”, o que está em jogo é a insistência em ser visto, ouvido e reconhecido.
Enquanto Cazuza usava sua arte para resistir no Brasil, Félix González-Torres criava obras que denunciavam o impacto da AIDS e convidavam o público a participar ativamente na preservação da memória. Uma de suas obras mais marcantes, Untitled (Portrait of Ross in L.A.), utiliza uma pilha de balas para simbolizar a vida de seu parceiro, Ross Laycock, que morreu de complicações relacionadas à AIDS. O público era incentivado a pegar as balas, simbolizando a perda e a partilha, enquanto mantinha viva a memória de Ross.
Assim como Cazuza e González-Torres, a cultura continua sendo um espaço essencial de resistência. No Brasil, instituições como o MASP promovem exposições que resgatam narrativas LGBTQIA+, destacando artistas marginalizados e estimulando debates públicos. Projetos como esses não apenas celebram a diversidade, mas também enfrentam o silenciamento, reforçando que a memória é um ato político.
A resistência cultural se torna ainda mais urgente diante da ascensão de movimentos conservadores globais, como na Hungria e na Rússia, e em alguns estados dos Estados Unidos, onde políticas vinculam a diversidade de gênero a ameaças à moralidade. Proibições de performances drag, censura em escolas e leis anti-LGBTQIA+ são ferramentas de controle que buscam impor uma visão heteronormativa e silenciar identidades diversas.
Judith Butler afirma que “a vulnerabilidade é uma forma de resistência”. Essa vulnerabilidade transformada em força é o que vemos em cada exposição, cada música e cada obra de artistas como Cazuza, González-Torres e Somerville. Eles nos lembram que a tentativa de silenciar a história é uma batalha perdida, porque a memória é viva, resiliente e irreprimível. Cada letra de música, cada pilha de balas retirada, cada exposição é um ato de desafio ao esquecimento. Cabe a nós garantir que essas histórias sejam celebradas e mantidas vivas, porque, como Cazuza nos mostrou, “o tempo não para”. A existência, afinal, é o ato político mais poderoso que temos.
Questão: Em um momento de intensificação dos movimentos conservadores e tentativas de silenciamento de vozes e identidades diversas, como podemos usar a arte e a cultura para promover a mudança, criar um impacto duradouro e resistir ao retrocesso social?
André Ribeiro +15084464044 andre@andreams.art www.linkedin.com/in/andreams.art